Herança arquitetônica esquecida em Olinda

Antônio Assis
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Marcílio Albuquerque
Folha-PE

Mais de 8 mil km separam o Brasil de Portugal. Semelhanças e particularidades permeiam esse caminho banhado pelas águas do Atlântico. Para além do apanhado cultural, é na arquitetura onde são encontrados alguns dos laços mais próximos entre os dois países. Conhecida por sua imponente muralha, a cidade de Óbidos, a 80 km de Lisboa e quase 900 anos de fundação oficial, se mostra como um pouco de Olinda dentro do território Europeu. O casario histórico com herança dos mouros, suas ladeiras, sacadas com janelas trazem a atmosfera da Marim dos Caetés. Ambas são tombadas como patrimônio histórico da humanidade. A barreira, no entanto, fica por conta da preservação. Ao contrário do cenário intacto desde os tempos medievais, do lado de cá grande parte dos elementos se perdeu. Sem penar com a falta de conscientização dos habitantes e a carência de políticas efetivas para manutenção do patrimônio, o vilarejo lusitano acende o alerta.
A arquiteta pernambucana Vera Barreto esteve em Óbidos, conhecida como terra de nobres desde o século 13. Ela identificou as afinidades que saltam aos olhos nas moradias e no comércio que conseguem viver em harmonia. Óbidos tem também um imenso castelo, hoje servindo como pousada. A sensação, descreve, é de uma viagem no tempo sentindo, de imediato, o cuidado das pessoas com o lugar onde vivem.
    “Os moradores se detêm a pequenos detalhes nas cores azul ou amarelo, cultivam jardins vistosos e não se lançam a ampliar o que já têm. Tudo está conservado”, revelou. Segundo ela, o visitante consegue se perder entre as vias de paralelepípedos, igualmente cheias de turistas e áreas verdes. “Assim como Olinda, também é terra de artesanato, música e gastronomia. A diferença está na forma que eles enxergam tudo isso”, disse.

    Reprodução
    Cidade de Óbidos, a 80 km de Lisboa e quase 900 anos de fundação oficial, se mostra como um pouco de Olinda

    Semelhanças
    O reduto português soma algo em torno de 2,5 mil habitantes. O número se aproxima com a marca populacional encontrada no Sítio Histórico de Olinda, com cerca de 3 mil moradores. A fatia representa menos de 1% do universo de 380 mil pessoas apontadas pelo IBGE na cidade irmã do Recife, hoje com 481 anos de existência. Óbidos, um dia formou um presente do rei Diniz para a mulher Isabel, mantida como uma grande joia até hoje.


    Para o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, Cláudio Borba, ambas têm em sua formação a influência dos vários séculos de domínio mouro nas regiões de Centro e Sul de Portugal. “Olinda foi implantada apresentando similaridades relativas ao parcelamento do solo, ao traçado das vias e às escolhas de localização de marcos como templos católicos, largos e pátios. Entretanto, tem distinções ligadas à adaptação dessas características ao seu relevo, à constituição do solo e à proximidade do mar”, explicou.
    Perdas
    Para Borba, a arquitetura dos imóveis da Cidade Alta foi muito alterada ao longo de mais de 400 anos. Ele relembra que a área foi, até mesmo, incendiada durante a invasão holandesa. “No século 19 e início do século 20, império e primeira república, tivemos momentos de revisão dos motivos decorativos das casas urbanas das cidades brasileiras ao gosto neoclássico e eclético”, ressaltou.

    Quando a cidade tornou-se atraente para a fixação de artistas e intelectuais, nas décadas de 70 e 80, foi inevitável, ponderou Borba, que muitas alterações fossem realizadas no interior dos imóveis, inserindo características modernas, como plantas livres, mezaninos e terraços nos pavimentos superiores. “Porém, se a descaracterização se dissemina se perde o controle, perde-se a memória”.
    Ele citou situações semelhantes em cidades como Faro e Braga, além da brasileira São Luiz, no Maranhão. Da arquitetura mourisca, sobraram apenas dois sobrados em Olinda, sendo um na rua do Amparo e o outro remanescente na praça Conselheiro João Alfredo. Esse último, com sacadas geométricas, abrigou o Imperador Pedro II.
    Barateamento
    A presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil em Pernambuco (IAB-PE), Vitória Régia Andrade, destacou elementos ausentes para unir Olinda aos cerca de 800 Patrimônios da Humanidade, eleitos pela Unesco em todo o mundo. “É algo que está intrínseco nos cidadãos, tem origem na falta de pertencimento com o lugar onde vivem. Hoje assistimos a proprietários que preferem construir um novo quarto ou mais um banheiro, em detrimento do valor afetivo do imóvel”, ressaltou.

    Segundo a gestora, a condição de capital também simboliza um peso neste processo. “Uma obra em uma casa com chancela de preservação chega a ser 50% mais cara que uma convencional, cabendo profissional habilitado. Por aqui se acaba fazendo de qualquer jeito, à revelia dos órgãos e pensando apenas na comodidade”, acrescentou.
    Dificuldades
    A visão é compartilhada pelo Doutor em Desenvolvimento Urbano e professor da UFPE, Tomás Lapa. Para ele, as dificuldades econômicas do País e do Estado acabam somadas às carências de preservação. “Muitos dos moradores até tentam, mas não dispõem de meios para manter sem descaracterizar. Por outro lado, as esferas a quem caberia esta competência acabam omissas, sem dispor de estrutura de acompanhamento”, afirmou.

    O urbanista lembra as políticas públicas da União Europeia para preservação cultural, imersas em legislações fortes e restritivas. “Os próprios habitantes se interessam em liderar projetos e capitanear recursos. São bem mais atuantes”, destacou.
    Já o gestor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), com sede em Olinda, Fernando Augusto Souza, parte em defesa. “Não se trata apenas do poder de polícia fiscalizadora, temos que trabalhar a educação patrimonial. A preocupação está em estimular as pessoas, promovendo o diálogo. Por meio de palestras e debates, é ensinado que preservar é uma forma de manter sempre vivo. Porém, estamos dentro de uma política nacional que ainda precisa respirar melhor”, disparou.
    Nas fachadas, a descaracterização
    No Sítio Histórico de Olinda o sol parece nascer mais cedo. São carros circulando desregradamente nas vias estreitas, estudantes em direção à escola, gente que chega a toda hora para visitar. É barulho, sujeira e muita deterioração. Enquanto sobrados seguem deteriorados, muros avançam e as fachadas vão ganhando revestimentos modernos, bem longe do que foram projetados.

    No alto dos seus 91 anos, vividos por ali, na ladeira da Misericórdia, a aposentada Arailde Botelho é uma das sobreviventes a invasão da cidade. “Gosto muito de morar aqui, mas sinto que o lugar já não vai muito longe. Falta vontade de fazer mais”, opinou.
    Na contramão dos pleitos de preservação, o microempresário Raiony Costa, 27, reclama. “Acabamos como prisioneiros do que é nosso. Qualquer intervenção acaba esbarrando em muita burocracia. Morar em um local antigo requer ainda mais a necessidade de reformas”, opinou o morador da rua Treze de Maio.
    À frente da Sociedade Olindense de Defesa da Cidade Alta (Sodeca), Edmilson Cordeiro pondera. “Todo o sistema é muito falho e acaba deixando brechas. Hoje temos enormes painéis de grafitagem nas paredes de um conjunto que é tombado. Não é a toa que, a todo o momento, vivemos sob a ameaça de perder esse título”, afirmou.
    O secretário de Meio Ambiente Urbano e Natural de Olinda, Helvio Polito, reconhece as dificuldades. “Diferente de outras cidades históricas, temos 80% das edificações usadas como residência, o que implica em novos formatos de família e a necessidade de alterações. Estamos em fase de conclusão de um plano de gestão que possibilitará identificar os principais problemas”, assegurou.
    Segundo ele, até dezembro, será montado uma espécie de escritório de assistência para pequenos reparos. “A ideia é de auxiliar os cidadãos em reformas emergenciais, produzindo menores impactos” disse.

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