Peste: uma ameaça silenciosa

Antônio Assis
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A pesquisadora Alzira Almeida foi uma das pioneiras no Serviço de Referência em Peste da Fiocruz PE. Ela está no projeto há 50 anos

Renata Coutinho

Folha de Pernambuco 

Peste. Uma das mais terríveis doenças que já assolou o mundo, e que marcou também nossa região, causando medo e morte. Para além das narrativas do passado, também no presente ela se faz importante e temida nos mistérios de silenciamentos inexplicáveis. Calada, não significa erradicada.

O bacilo Yersínia pestis, ensinado na escola sob o nome de Peste Negra, responsável por dizimar um terço da população da Europa na Idade Média, seguiu rota pelo Brasil no início do século 20, história pouco conhecida pela maioria dos brasileiros. Os recorrentes surtos em Pernambuco, de 1902 até os anos 1960, colocaram o Estado numa posição de alerta nos cenários nacional e internacional, mas também de destaque na produção de conhecimento, reconhecida até hoje.

É aqui, por exemplo, que está a maior coleção de Yersínia pestis da América Latina e a única do País, com 917 cepas (vírus isolado). E foi plantada aqui a vigilância mais antiga em território nacional: o Serviço de Referência em Peste (SRP) da Fiocruz PE, que completou 50 anos.

A instalação do SRP, em 1966, surgiu como uma resposta à emergência em saúde. “A situação no Brasil estava calamitosa. O País era o 3º do mundo em registros de casos de peste. Só perdia para a Birmânia (hoje República do Myanmar) e para o Vietnã. Naquele ano, após meio século da chegada da doença no Brasil, ainda havia muitas dúvidas sobre a enfermidade, a profilaxia, o diagnóstico e a ecologia dela. Foi nesse contexto que o Ministério da Saúde solicitou ajuda à OMS para a indicação de uma grande autoridade no tema que ajudasse a organizar um plano de trabalho para estudar a peste no Brasil”, relembra a pesquisadora Alzira Almeida, coordenadora do SRP e uma das primeiras estudiosas da doença no Estado.

Ela, com formação inicial de nutrição, e o biólogo Célio Rodrigues foram enviados com uma pequena equipe para a localidade de Exu, no Sertão, epicentro nacional da doença à época. O município sertanejo passava por mais um ciclo do mal na década de 1960, com 65 enfermos sendo investigados, e era acompanhando por notificações em Araripina (28 registros), Ipubi (8), Bodocó (7), Ouricuri (1) e Granito (1). Números que se sabem muito maiores diante da subnotificação gritante do passado. “Eu não tinha a menor ideia do que era peste. Fui começar do zero. Contudo, diante da falta de pessoal qualificado naquele tempo, o projeto desenvolvido pelo francês Marcel Baltazard previa a formação de pessoal”, comenta Alzira.

A precariedade momentânea não foi obstáculo diante da necessidade de se combater a pulverização de casos no Interior, não só de Pernambuco, mas ainda do Ceará, Paraíba, Bahia. Foi assim que Alzira Almeida passou de nutricionista à microbiologista, começando já naquela época o isolamento de cepas de Yersínia pestis, tanto de coletas humanas quanto de roedores e pulgas, que compõem a coleção Fiocruz-CYP.

Nos anos 1980, outro mérito dela: a implantação da produção do antígeno para diagnóstico da peste no Brasil, que garante até hoje os serviços de vigilância da enfermidade. “Desde 1980 não temos registro de casos de peste em Exu, mas os olhos continuam voltados para a cidade para ver se ela volta e como volta. São os silêncios da peste. Estamos estudando esse fenômeno de silenciamento, mas que não significa seu desaparecimento. Não podemos esquecer que ela é uma doença que sempre está pregando surpresas e que surge em lugares onde já não havia sinais há muitos anos”, alerta.

Além do caráter de vigilância em saúde, o programa de Yersínia tem valor para segurança global. A bactéria, que tem na sua história secular até mesmo implicações como arma de guerra, está sob a proteção de um forte esquema de segurança porque poderia ser artefato num conflito biológico. Alzira lembra que, no dia do atentado às Torres Gêmeas, no 11 de setembro de 2001, precisou passar cadeados na geladeira da coleção sob a ameaça de roubo terrorista. Todo o material e conhecimentos conquistados durante esses 50 anos de estudo deixaram Exu, em 1970, e hoje estão reunidos no laboratório do Recife.

Além do temor, o encantamento

A história da peste ao longo das civilizações é recheada de narrativas épicas que envolvem a ciência, a sociedade e até mesmo a religiosidade, já que a doença foi atribuída à punição divina contra os homens em várias Eras. Como ela surgiu? Difícil de precisar. Por isso, pesquisadores estabeleceram uma divisão clássica de três pandemias mundiais que dizimaram milhões de pessoas. “A 1ª ocorreu durante o chamado Reinado de Justiniano, em cerca de 500 anos depois de Cristo, e que, contribuiu para a queda do Império Romano, uma vez que os soldados foram dizimados. A 2ª foi na Idade Média, que assolou a humanidade durante vários séculos. Já a 3º foi em 1894, depois de uma grande epidemia na China e de Hong-Kong ter disseminado para todo o mundo”, explica Alzira Almeida. Foi justamente nesta última pandemia que começaram os relatos da chegada da peste no Brasil. A maior facilidade de viagens e aumento de velocidade nos transportes da época, com o navio a vapor, foram decisivos para a enfermidade alcançar o País. Em 1899, o primeiro caso foi registrado no porto de Santos, em São Paulo, e até os primeiros 15 anos de 1900 todos os portos do Brasil viram a Yersínia chegar sorrateira nos porões de navios infestados de ratos e pulgas.

O professor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) Celso Tavares, em um trabalho sobre contexto, estrutura e processos da enfermidade no Brasil, resgatou memórias da peste em Pernambuco. Identificou que a doença aportou em março de 1902, após a escala no Recife, de navio austríaco. Jornais da época, que já noticiavam a explosão de casos no Rio de Janeiro e São Paulo, prenunciavam que a peste não tardaria a chegar ao Recife. Antes da confirmação dos doentes, houve uma grande mortalidade de ratos nos bairros de Santo Antônio e São José.

A primeira morte documentada foi a do advogado e jornalista Albuquerque Sales, no fim de março de 1902. Nos meses subsequentes, o que se viu foi um pandemônio na Capital. Escolas foram fechadas para evitar a disseminação. Houve desinfecção urgente dos prédios dos Correios. Suspensão das aulas na Faculdade de Direito. Fogueiras eram colocadas nas ruas para afugentar ratos e a doença.

O Recife conviveu com a peste até 1924. Por outro lado, a partir de 1913 ganhou força no Interior, começando por Caruaru e São Caetano. Até 1936, mais de 40 municípios tinham registros. Um dos episódios mais dramáticos aconteceu em Triunfo, que teve 2,3 mil casos registrados e 1,4 mil mortes entre 1926 e 1927. A última epidemia no Estado data dos anos 1960. No Brasil, o último surto foi na Paraíba, em 1986. E o último diagnóstico no País foi em 2005, no Ceará.

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