Tragédia cotidiana do Brasil é contada na peça Leite Derramado, em cartaz neste fim de semana

Antônio Assis
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Atriz Juliana Galdino intepreta o protagonista Eulálio D'Assumpção. 
Crédito: Edson Kumasaka/Divulgação

Isabelle Barros
Diário de Pernambuco

O aristocrata falido Eulálio D’Assumpção condensa, em sua carne, memórias e delírios, os 517 anos de uma tragédia nacional encenada a cada minuto em certo país abaixo do Equador. Jogado na maca de um hospital público, o personagem é o protagonista da peça Leite Derramado, livre adaptação do livro homônimo de Chico Buarque, lançado em 2009, e é o símbolo de um país frustrado em suas potencialidades. A peça, um dos grandes destaques nos palcos brasileiros em 2016, começa sua turnê nacional pelo Recife, ao participar do TREMA! Festival de Teatro em duas sessões, neste sábado e domingo, no Teatro de Santa Isabel.

O centenário Eulálio, descendente de uma linhagem ilustre de colonizadores portugueses, latifundiários escravagistas e políticos corruptos, viu sua família sucumbir ao seu temperamento gastador e autoritário. O neto guerrilheiro e o bisneto traficante são alegorias de um futuro que não deu certo e fazem parte de sua desgraça particular. A peça, construída entre realidade, lembrança e alucinação, é o espelho torto de um Brasil que parece ter prazer em repetir seus fracassos. 

O livro escrito por Chico era, inicialmente, um monólogo, que foi desmembrado e burilado em sete versões diferentes até se transformar em texto teatral. Eulálio, o protagonista, é interpretado por Juliana Galdino, atriz de vastos recursos que já ganhou todos os principais prêmios nacionais voltados para interpretação. O diretor da peça, Roberto Alvim, do Club Noir (SP), deu entrevista ao Diario e contou mais detalhes sobre a montagem.

ENTREVISTA // ROBERTO ALVIM

Qual foi o impacto causado em você pela leitura de Leite derramado e o que te levou a adaptá-lo para o palco?
O projeto começou em setembro de 2015 e estreou em outubro de 2016. Eu estava procurando um romance que pudesse adaptar para o teatro e tivesse a grandeza de um Macunaíma ou de um Grande Sertão: Veredas. Queria um romance escrito no século 21 que pudesse apresentar uma visão panorâmica da nossa tragédia nacional. Lembrei do livro do Chico, conversamos e fiz uma adaptação dialógica. Li essa primeira versão para ele, que ficou emocionado e me cedeu os direitos com exclusividade. Depois disso, retrabalhei o texto para tentar fazer jus à grandeza das questões nacionais relativas a como o Brasil se formou e como o brasileiro se constituiu. A peça tem o sentido de ser uma ferramenta poética para repensarmos o que é ser brasileiro. Vivemos um momento tão vertiginoso que pensar essa questão é emergencial. 

O período entre o ensaio e a estreia da peça teve uma grande movimentação política no país. Você acha que isso potencializa os significados da obra?
A peça é maior do que essas polarizações contemporâneas. Precisamos olhar para a história desse país e compreender que há uma sombra totalitária tanto na direita quanto na esquerda. É necessário lidar com isso. A montagem propõe uma recepção mais profunda e uma modificação desse estado de coisas. A peça tem, em seu cenário, a frase “nossa tragédia é toda sua”, e a estamos construindo dia a dia. Fizemos isso com os índios, com os negros, na ditadura, com os episódios de corrupção. Toda ação política nasce da empatia. Se eu não sinto a dor de quem está desempregado, de quem está abandonado, é impossível tê-la. 

De que forma você encaminhou esse processo de criação do espetáculo?
Tenho 26 anos de carreira como diretor profissional, dirigi mais de 80 espetáculos e esse foi o mais difícil. O livro não tinha uma forma cênica e criar isso foi muito difícil. Montei três elencos inteiros e tive de dispensar vários atores à medida que encaminhei o texto à versão final. Por incrível que pareça, é mais fácil montar um autor clássico como Ibsen do que montar Chico e falar sobre nós mesmos. Eulálio se aliena de todas as transformações, colabora com as Forças Armadas, mas é atravessado por tragédias causadas por suas próprias ações. Todos nós, sejamos pobres ou ricos, seremos vitimas de uma tragédia nacional que acontece todos os dias.

A atriz Juliana Galdino, que interpreta Eulálio D’Assumpção, teve atuação amplamente elogiada pela crítica. De que forma o papel dela foi composto?
Ela sempre me surpreende a cada peça. Juliana não se acomoda no que já sabe, mas trabalha seu repertório dela em direções desconhecidas. Todo o seu aprendizado do teatro e da vida se condensa no Eulálio. Eu só disse a Chico que o protagonista seria uma mulher uma semana antes da estreia. Mandei uma foto e ele disse: esse era o homem que eu tinha imaginado. O sexo do ator não faz diferença, pois o Eulálio trabalha em contradições o tempo inteiro e é uma espécie de símbolo do inconsciente coletivo nacional. 

SERVIÇO
Leite Derramado, do Club Noir
Quando: Hoje, às 20h e amanhã, às 18h
Onde: Teatro de Santa Isabel - Praça da República, s/n, Santo Antônio
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia)
Informações: 3355-3323

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