No Dia Mundial da Gentileza, invisíveis descrevem convívio maquinal

Antônio Assis
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Paulo Trigueiro (textos) e Alfeu Tavares (fotos)
Folha-PE

Por definição, a gentileza torna as relações mais humanas, menos ríspidas. Por ter crescido sobre valores escravistas, a sociedade brasileira elege quem é gente e quem não é. Então, chega a ser acintoso falar sobre as amabilidades onde tantos não são vistos como sujeitos de direito por questões tais quais escolaridade, renda, raça. É por isso que hoje, no Dia Mundial da Gentileza, são os invisíveis que descrevem como é maquinal o convívio entre quem é apenas um acessório na engrenagem social do Recife.

O “negrinho de maldades” descrito por Gilberto Freyre é uma personificação dessa objetificação de parte da população. O conceito ajuda a ter compreensão do porque a falta de gentileza pode ser encarada como reflexo de uma questão social. “Crianças aristocráticas tinham um escravo para brincar, com quem podiam fazer o que quisessem. Esse garoto, obviamente, não era um sujeito de direitos. Ele podia ser animalizado”, contextualizou a doutora em sociologia pela USP Maria Eduarda da Mota Rocha.

O pensamento da época, uma sociedade dividida entre gente e não-gente, não se modifica simplesmente porque o tempo passa. “Há uma produção contínua de desigualdade, numa construção que durou séculos. Segue-se a polarização e a nossa chance de percebê-la está em observar a invisibilidade cotidiana de trabalhadores braçais, mendigos, prostitutas e LGBTs”, explicou. “Hoje, a animalização não está mais na figura do negrinho de maldades, mas na forma de elevadores de serviço e transporte público degradante. Estamos cegos? Não vemos quem utiliza os ônibus e como eles são superlotados?”

Quem tem o privilégio de ser considerado humano acredita ter direitos sobre os homens-objetos. Assim, a gentileza que os humanizaria é uma afronta à divisão social, devido à criação de um vínculo entre iguais. A má vontade no agir se faz presente, principalmente, nas relações obrigatórias por motivo de serviços. “O empregado de hoje é o escravo de ontem. E isso determina como pessoas se relacionam umas com as outras. Políticas públicas que apliquem uma cultura contrária são o caminho, mas não são bem aceitas pela minoria dominante. Quando a PEC das domésticas estava sendo votada, uma delas apanhou da patroa por utilizar o elevador social em um edifício em Boa Viagem”, lembrou. “A discriminação vai além da questão da raça. A mudança assusta. Afinal, há pensamentos como: ‘quem ele pensa que é para disputar a vaga de graduação na UFPE com o meu filho?’”

Justamente porque as políticas públicas são a saída Para Maria Eduarda, o momento político atual do País está intimamente ligado a um retrocesso na redução desse pensamento de desigualdade social. “Os direitos do negro, do trabalhador, do LGBT, estão sendo colocados em xeque. 

Cegueira coletiva nos bares

Mais da metade das pessoas que se servem no bar de seu Manoel Ferreira, 66, no bairro de Santo Antônio, no Centro, não enxerga a garçonete Cristina da Conceição, que trabalhou 24 de seus 52 anos ali. A conta foi feita por ela. “Eles me chamam de ‘garçom’, assim, no masculino. É ‘faz isso’, ‘faz aquilo’, como se eu fosse uma escrava. Poxa, peça por favor, tenha educação”, apela. 

Ela percebe uma diferença entre o tratamento que as pessoas dão a ela e o que dão ao dono do bar, sempre presente. Mas o próprio Manoel, que trabalha ali há 39 anos, não percebe essa invisibilidade. “O que vejo é que, com o fechamento dos bancos aqui perto, a classe social que frequenta meu bar mudou. A antiga clientela, repleta de bancários, tinha um trato melhor com a gente. Hoje é a classe mais baixa que vem e às vezes tem pessoas que querem brigar ou causar confusão. Com a nossa experiência, resolvemos. Cristina, inclusive, percebe logo quando uma pessoa é ignorante e passa a ir menos por lá. São estratégias necessárias", revelou.

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