A rede de cidadãos voluntários que fiscaliza prefeitos e vereadores

Antônio Assis
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Estudantes em Londrina. Graças a cidadãos voluntários, a prefeitura comprou uniformes escolares (Foto: Gilberto Abelha/Agência de Notícias Gazeta do Povo)

Luis Lima
Época

A 307 quilômetros de Teresina localiza-se Picos, a “capital modelo” do estado do Piauí, como é conhecida. O município tem menos de 80 mil habitantes, bom Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) para o padrão do sertão e economia em movimento. Não tanto, porém, a ponto de sobrar dinheiro. Em 2014, na gestão do ex-prefeito Kléber Eulálio (PMDB), cidadãos identificaram, num edital para compra de alimentos e produtos de limpeza para o setor público, a presença de perfume, creme de barbear e “esmalte de cores diversas”, além de sobrepreços em vários itens. Em outro edital, os cidadãos flagraram a intenção de compra de anestésicos usados em cirurgias de alta complexidade – embora a prefeitura não administre nenhum centro cirúrgico. As irregularidades vieram à tona graças à atuação do Observatório Social do Brasil (OSB), uma rede de organizações civis que une voluntários para fiscalizar o uso do dinheiro público nas prefeituras e Câmaras Municipais.

Após alertas ao Executivo federal, sem retorno, e posterior denúncia ao Ministério Público Federal, nos dois casos as compras foram reconsideradas. A prefeitura chamou mais fornecedores para a disputa e excluiu itens sem pé nem cabeça. O município economizou mais de R$ 5 milhões. “De maio de 2014 até hoje, praticamente todas as licitações de Picos foram monitoradas pelo OSB. Estimamos uma economia total de R$ 41,7 milhões até agosto do ano passado”, disse Tiago Rêgo, presidente local da entidade.

Em Picos, o OSB tem sede na Associação Comercial. É assim em 70 dos 105 municípios da rede do OSB, espalhados por 19 estados. Foi numa Associação Comercial que surgiu o primeiro OSB, em Maringá, no Paraná. A causa foi a gestão do prefeito Jairo Gianoto (PSDB), de 1997 a 2000 (a Justiça Estadual condenou Gianoto a devolver dinheiro aos cofres públicos, mas somente dez anos depois). O então vice-presidente das Associações Comerciais do Paraná, Eduardo Araújo, propôs um movimento para impedir o mau uso dos recursos municipais. “No fim de 2004, criei o Movimento Pela Cidadania Fiscal [MPCF], um trocadilho com a CPMF, que culminou no Observatório Social de Maringá, o primeiro do Brasil, no começo de 2005”, conta. A ideia era criar um coletivo de fiscais das compras e contratações de serviços pelo poder público.

Atualmente, cerca de 3 mil voluntários, incluindo professores, empresários, profissionais liberais, servidores públicos não municipais e integrantes de diversas associações de classe, participam da rede. Desde 2013, o OSB estima ter propiciado economia de R$ 1,5 bilhão, graças ao acompanhamento de licitações e das atividades de prefeitos e vereadores. A rede se concentra nas compras e contratações ruins. “O foco do trabalho está na eficiência da gestão pública, e não na caça aos corruptos”, explica a diretora executiva da entidade, Roni Enara. Segundo ela, em média, a atuação do OSB contribui para uma economia de 10% a 15% no orçamento de compras nas cidades.

Ações do tipo contribuem com a reorganização das finanças municipais, uma necessidade urgente e difusa no país. Nas primeiras semanas deste ano, 43 prefeituras decretaram calamidade financeira, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). As cidades sofrem, como os estados e o governo federal, na crise fiscal profunda por que passa o país. “Parte dessas prefeituras não teria chegado a essa situação se tivesse usado ferramentas de boa gestão”, diz Roni.

Os voluntários do OSB tentam dedicar parte do tempo às decisões dos vereadores, nem sempre sensatas. Em Tubarão, Santa Catarina, após cinco meses de pressão popular, os legisladores concordaram em reduzir a previsão de um repasse mensal do Executivo ao Legislativo, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2017. A campanha para a redução começou após um estudo mostrar que a Câmara de Tubarão gastava bem mais que a de Brusque, com população e número de vereadores bem parecidos. A mudança economizará R$ 4,7 milhões à cidade.

A rede está presente em dez capitais, incluindo Brasília, Cuiabá, Natal e Porto Alegre, e deverá alcançar 150 cidades até junho. Na Grande São Paulo, São Caetano do Sul é a primeira cidade a participar. Os voluntários locais apresentaram uma carta com nove princípios de transparência, incluindo a criação de um diário oficial eletrônico e uma secretaria especializada em compras e gestão de contratos. “As cidades brasileiras têm níveis de transparência muito diversos. Sem instrumentos mínimos de controle, não é possível monitorar adequadamente os trabalhos do Executivo e do Legislativo”, disse o presidente local do OSB, Mário Bohm. Durante a campanha, o prefeito eleito, José Auricchio Júnior (PSDB), comprometeu-se a encampar as medidas. Até a sexta-feira 3, não havia voltado a falar do tema.

Na estratégia do OSB, tão ou mais importante que zelar pelo bom uso do dinheiro público é estimular o desenvolvimento econômico regional. “As compras governamentais tendem a ser viciadas não só no âmbito federal, como vimos na Operação Lava Jato. Nos municípios, é comum que os mesmos fornecedores vençam sempre, mesmo com ofertas a preço de ouro”, afirma Ney Ribas, presidente do OSB nacional. Com isso, a população perde duas vezes – com o desperdício do dinheiro público e com a perda de oportunidade para que mais empresas locais ganhem porte e qualidade. “Por estar ligado a associações comerciais, o Observatório leva ao empresariado a capacitação para participar de futuras ofertas públicas. Isso puxa os preços para baixo, sem reduzir a qualidade”, diz Bruno Quick, gerente de políticas públicas e desenvolvimento territorial do Sebrae. Ele calcula que o mercado de compras públicas no Brasil ultrapasse os R$ 500 bilhões – uma fonte de desenvolvimento ainda muito mal usada. 
(Arte: ÉPOCA)

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